Eleições

As mulheres e a democracia: o que mudou depois de 1974

Há 129 anos a Nova Zelândia fez história ao ser o primeiro país do Mundo a dar à mulher o direito ao voto, estávamos a 21 de setembro de 1893. Em Portugal foram precisos mais 82 anos para que todas as mulheres pudessem votar.

A 22 de abril de 1822, na primeira instituição parlamentar portuguesa – Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa –, durante a discussão do artigo da constituição relativo às eleições dos deputados, Borges de Barros apresentou uma proposta para o direito de voto das mulheres com seis filhos legítimos. O deputado considerava que às mães não se devia negar “o direito de votar naqueles que devem representar a Nação”, pois ninguém dá mais ao país do que “quem lhe dá os seus cidadãos”. Acusava ainda os homens de manterem propositadamente as mulheres na ignorância, receando a sua superioridade. Borges de Barros afirmava que as mulheres não tinham qualquer “defeito” que as impedisse de exercer os seus direitos políticos.

Na defesa do sufrágio feminino, aquele parlamentar referiu a influência que as mulheres exercem em todas as fases da vida dos homens desde a “primeira educação”, o seu patriotismo e a sua coragem em momentos de crise, assim como o papel que podem desempenhar na vida pública. Mas a proposta de Borges de Barros não foi admitida à discussão pelo Parlamento, de acordo com o que tinha sido defendido pelo deputado Borges Carneiro.

Foi em 1911, um ano após ter sido implementada a I República, que aconteceu o primeiro ato eleitoral, para a Assembleia Nacional Constituinte. Publicada a 14 de março de 1911, a lei eleitoral da República dizia que estavam aptos a votar “todos os cidadãos portugueses com mais de 21 anos, que soubessem ler e fossem chefes de família.” No documento não era referido o género.

Carolina Beatriz Ângelo

Entre as várias mulheres defensoras do voto feminino, havia pelo menos uma que cumpria todos os requisitos e que não teve medo de avançar: Carolina Beatriz Ângelo. Com mais de 21 anos – tinha 33 na altura – era viúva e tinha uma filha a seu cargo, o que fazia dela chefe de família. Além disso, era médica, o que implicava não só saber ler e escrever, mas também possuir formação superior. Aproveitando a lacuna na lei, Carolina Beatriz Ângelo decidiu dirigir ao Presidente da Comissão Recenseamento do 2º Bairro de Lisboa um requerimento para que o seu nome fosse incluído.

Após a Comissão de Recenseamento e o Ministério do Interior terem rejeitado o seu requerimento para ser incluída nos cadernos eleitorais, Beatriz Ângelo recorreu para tribunal. A 28 de abril de 1911, o juiz responsável, João Baptista de Castro, que era pai de Ana de Castro Osório, sua amiga e também feminista, proferiu uma sentença histórica ao incluir o nome de Carolina Beatriz Ângelo no recenseamento editorial

“Excluir a mulher (…) só por ser mulher (…) é simplesmente absurdo e iníquo e em oposição com as próprias ideias da democracia e justiça proclamadas pelo Partido Republicano. (…) Onde a lei não distingue, não pode o julgador distinguir (…) e mando que a reclamante seja incluída no recenseamento eleitoral”.

João Baptista de Castro

Um mês depois, a 28 de maio, Beatriz Ângelo dirigiu-se às urnas do Clube Estefânia, local onde funcionava a Assembleia de voto de S. Jorge de Arroios, tendo ao seu lado companheiras de luta pelo sufrágio feminino. Usando o distintivo das sufragistas portuguesas, com três cravos brancos, votou com o número de eleitora 2.513, sagrando-se a primeira mulher a fazê-lo em Portugal.

O voto de Carolina Beatriz Ângelo foi o ponto de partida para uma luta que durou vários anos. Em 1931 as mulheres conseguiram o direito ao voto, mas com limitações. Nesta altura só estavam elegíveis as mulheres que tivessem frequentado o ensino superior ou as chamadas “chefes de família”, que eram mulheres portuguesas, viúvas, divorciadas ou judicialmente separadas de pessoas e bens, com família própria, assim como as mulheres de casas cujos maridos estejam ausentes nas colónias ou no estrangeiro.

Três anos depois, em 1933, o Decreto n.º 19.694, de 5 de maio, possibilitou o direito de voto à “mulher solteira, maior ou emancipada, quando de reconhecida idoneidade moral, que viva inteiramente sobre si e tenha a seu cargo ascendentes, descendentes ou colaterais.”

No ano seguinte, com o Decreto-Lei n.º 24.631, de 6 de Novembro de 1934, surgiu a possibilidade de voto para as mulheres com mais de 21 anos, para as solteiras com rendimento próprio ou que trabalhassem, para as mulheres chefes de família e para as casadas com diploma secundário ou que pagassem determinada contribuição predial. O mesmo diploma instituía igualmente a elegibilidade para a Assembleia Nacional e para a Câmara Corporativa. 1934 foi o ano da eleição das três primeiras deputadas à Assembleia Nacional: Maria Guardiola, Domitília de Carvalho e Cândida Parreira.

Em dezembro de 1968, com Marcello Caetano a chefiar o governo, a lei Eleitoral n.º 2317, de 26 de dezembro de 1968, tentou diminuir a discriminação sexual, com o voto a ser permitido a todos os que soubessem ler e escrever. No entanto, só depois do 25 de Abril de 1974, com a lei n.º 621/74 de 15 de novembro, o direito de voto se tornou universal em Portugal.

O voto no Estado Novo

O Estado Novo, apesar de ser uma ditadura, consagrou na Constituição a realização de eleições presidenciais, legislativas e para as Juntas de Freguesia. Todavia, os resultados eleitorais sempre foram controlados de modo a garantir a vitória do candidato ou da lista da União Nacional e todas as eleições foram fraudulentas. As eleições presidenciais de 1949 e 1958 foram dois desses momentos importantes para Portugal, em que o povo teria podido votar e decidir o futuro do país. A opressão, a censura, a violência e a fraude marcaram a campanha eleitoral e determinaram a votação: a vitória dos candidatos da União Nacional e a derrota dos da oposição, apesar destes terem, inequivocamente, o apoio da maioria da população.

Durante 48 anos os portugueses não tiveram direito de escolha. Ainda assim, o Governo preocupou-se sempre em realizar eleições, tanto para as Juntas de Freguesia, como legislativas e presidenciais, já que o ato eleitoral era uma forma de legitimar o poder do Governo, quer a nível interno, quer a nível externo. A nível interno, porque “era dado ao povo o direito de poder mudar o Governo” e manifestar o seu desagrado, caso estivesse insatisfeito e era uma forma de dizer que aquele regime tinha o aval dos portugueses que se deslocavam às urnas. A nível externo, mostrava ao mundo que o regime implantado em Portugal estava legitimado pelos resultados eleitorais e que era um país livre, em que os cidadãos podiam escolher livremente o governo e o Presidente da República.

No fundo, o regime controlava de tal forma as eleições e a campanha eleitoral que sabia que era impossível a oposição ganhar. Por isso permitia que as eleições se realizassem, de forma a adquirir novas informações sobre a oposição e obter a legitimidade interna e externa que tanto procurava, sobretudo após a derrota dos fascismos na Europa.

Eleições livres após cinco décadas de ditadura

As primeiras eleições livres foram realizadas um ano depois do dia da revolução de 25 de Abril de 1974 e destinaram-se a eleger a designada Assembleia Constituinte, aquela que viria a fazer aprovar a nova Constituição da República Portuguesa. Depois de 48 anos de ditadura, a 25 de abril de 1975, as restrições ao voto foram aliviadas e as mulheres passaram a ser incluídas no processo de sufrágio.

Tereza Xardoné, hoje com 73 anos de idade, foi uma das mulheres que votou pela primeira vez nas primeiras eleições livres em Portugal depois do 25 de Abril. Tereza tinha então 26 anos e lembra-se que “sentia uma enorme alegria e uma sensação vitória por poder ir votar”. Para Tereza, esse dia foi o culminar do processo de libertação começado no dia 25 de Abril de 1974.

Foi votar sozinha, e afirma que não precisou do conselho de ninguém para saber o que fazer e sobre a importância daquele dia. Segundo ela, o período de 1974 a 1975 tinha sido tão intenso e rico ao nível de informação, que não foram as palavras da família que mais a influenciaram.

“Era o infindável tamanho das filas para votar e notava-se a forma como as pessoas estavam vestidas, muito bem arranjadas como se fossem para uma festa. E era de facto uma festa. Mesmo os menos abastados e talvez até esses muito em especial, trajavam fatos domingueiros.”

Tereza Xardoné
Tereza Xardoné

Após ter votado, na freguesia do Lumiar, em Lisboa, Tereza seguiu feliz e foi comemorar para casa de amigos que com ela partilharam aquele dia histórico. Sabia que, para além de serem as primeiras eleições livres, era também uma grande vitória para as mulheres. E aqui também ela se lembrou de Carolina Beatriz Ângelo.

“Com uma determinação e inteligência raras, ela conseguiu tornear e aproveitar o facto de não estar referido o sexo dos votantes no Código Eleitoral para as votações de 28 de maio de 1911, para se inscrever nos cadernos eleitorais.”

Tereza Xardoné

Na altura, Tereza era aluna do ISCEF (Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras), o que ela acredita ter feito a diferença na sua perceção, “Na minha adolescência e pelo facto de frequentar uma faculdade altamente politizada, tive oportunidade de me ir confrontando com muitas destas questões tanto numa abordagem académica como noutras abordagens mais coloquiais, entre colegas. E, para nós, a não existência de voto livre era um dos símbolos da opressão que reinava em Portugal e que nos afastava dos outros países da Europa, designadamente os mais desenvolvidos.”

Tereza ganhou amor pela política, e anos mais tarde acabou por entrar nesse mundo. Apesar do seu posicionamento político se identificar com as linhas programáticas de um partido, nunca se inscreveu em nenhum. Começou na função pública em 1972, tendo exercido também funções na área de apoio direto ao Governo, adjunta do Gabinete do Governo em Macau, adjunta da Secretária da Modernização Administrativa, adjunta do Secretário de Estado da Administração Pública, chefe de Gabinete da Ministra da Saúde e chefe de Gabinete do Secretário de Estado da Administração Pública. Terminou a sua carreira como Secretária Geral Adjunta da Assembleia da República.

Hoje já reformada, Tereza acredita que para ela a política já era muito clara nessa época. Crê na ideia de que “cada pessoa, ao nascer, já é um ser político. Já ser partidário é algo muito diferente e que depende da vontade e das opções de cada um.” Assume que, apesar de todas estas alterações na política, que o papel das mulheres ainda contmua a ser visto de forma diferente.

“O papel das mulheres na sociedade civil é menosprezado e as atitudes e posições por elas assumidas em situações idênticas às dos homens continuam ainda a ter leituras diferentes conforme se trate de homem ou mulher.”

Tereza Xardoné

Entre 1975 e 2019, a abstenção em eleições para a Assembleia da República octuplicou. A 25 de Abril de 1975 registou-se o nível mais elevado de participação, quando votar era um direito recém-conquistado após 48 anos de ditadura. Nas eleições para a Constituinte, a assembleia que ia redigir e aprovar a Constituição, os abstencionistas foram pouco mais de 526 mil.

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Desde então, a curva da abstenção foi sempre ascendente. Nas legislativas de 1976 ultrapassou-se o milhão de abstencionistas, em 1985 chegou aos dois milhões, e dez anos depois, na ida às urnas de 1995, atingiram-se os três milhões. Nas legislativas de 2015, foram mais de 4,2 milhões aqueles que não votaram. Em 2019, a abstenção superou os 51%, um valor recorde em democracia.

A importância do voto

À medida que passam os atos eleitorais, o número daqueles que optam por não votar vai aumentando, batendo recordes que, à partida, seriam inimagináveis.

As explicações para o desinteresse são várias. Segundo os eleitores mais distanciados do processo eleitoral, essas razões prendem-se com o facto de os partidos serem cada vez menos representativos do pensamento dos cidadãos. Ao mesmo tempo, é reforçado que os políticos utilizam uma linguagem pouco entendível e que as promessas que são feitas em todas os atos eleitorais são cada vez menos credíveis.

O voto nestas eleições – como noutras – é determinante para se dizer qual o caminho a adotar. Quanto mais não seja porque Portugal esteve mais de 40 anos sob ditadura, sem hipótese de fazer escolhas. A história diz-nos que este foi um direito que custou demasiado a conquistar, pelo que não devemos entregar nas mãos de outros as escolhas que competem a cada um de nós. Na Arábia Saudita, por exemplo, as mulheres só conquistaram esse direito no século XXI, em 2011.

Carolina Beatriz Ângelo morreu no mesmo ano em que votou para as eleições da primeira Assembleia Constituinte, a 13 de outubro de 1911, com 33 anos. Não assistiu ao 1º aniversário da Implantação da República nem às mudanças na lei, que, pouco a pouco, foram permitindo o voto às mulheres até à abolição de todas as restrições, após a revolução de 25 de Abril de 1974, sessenta e quatro anos depois da participação pioneira de Carolina Beatriz Ângelo.

Tereza faz um pedido a todos os portugueses: “votem muito, e se possível, não votem de forma a pôr em risco conquistas já estabilizadas.” Dia 30 de janeiro é através do voto nas eleições legislativas que o povo pode expressar convicções e eleger os representantes máximos do nosso país. Por isso lhe deixamos um pedido: vote!

Por João Costa e Silva e Marta Rodrigues

Posted by João Costa e Silva & Marta Rodrigues in notícias, Temporada 2021/2022